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segunda-feira, 23 de abril de 2007

Samson et Dalila, Saint-Saëns


Camille Saint-Saëns
Samson et Dalila, op. 47
[versão de concerto]

Gulbenkian, 26 e 29 Abril 2007

Coro Gulbenkian
Orquestra Gulbenkian
Lawrence Foster [ Maestro

Jon Fredric West [ Tenor (Sansão)
Hadar Halévy [ Meio-Soprano (Dalila)
George-Emil Crasnaru [ Baixo (Abimélech / Velho Hebreu / 2.º Filisteu)
Luís Rodrigues [ Barítono (Sumo Sacerdote de Dagon)
Marcos Santos [ Tenor (Mensageiro Filisteu)
Alexey Shakitko [ Tenor (1.º Filisteu)

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Camille Saint-Saëns
Paris, 9 de Outubro de 1835
Argel, 16 de Dezembro de 1921

Samson et Dalila, op. 47
Ópera em três actos
Libreto de Ferdinand Lemaire
Estreia: Hoftheater de Weimar, 2 de Dezembro de 1877

Compositor, pianista e organista, Camille Saint-Saëns foi inicia- do na música enquanto criança por uma tia-avó. Dotado de notável precocidade artística, em 1846 deu o seu primeiro concerto na famosa Sala Pleyel. O público e os críticos parisienses pasmaram com as extra-ordinárias aptidões do prodígio e o correspondente do jornal Boston Gazette escreveu: “Há um rapaz em Paris, chamado Saint-Saëns, que tem só dez anos e seis meses, mas toca de cor as obras de Haendel, Bach, Mozart, Beethoven e as de mestres contemporâneos”.

Em 1848 ingressou no Conservatório de Paris e teve como mestres Benoist em órgão e Halévy em composição. Tornou-se organista de Saint-Merry (1853-1857) e da Madeleine (1857-1877). Foi professor de piano na Escola de Niedermeyer, onde exerceu uma acção renovadora, tendo como discípulos Fauré, Gigout e Messager. Em 1871 fi gurou entre os animadores e fundadores da Société National de Musique, cujo objectivo era a defesa e promoção da nova música francesa do tempo. O papel do compositor foi, neste capítulo, de primordial importância. Temos de ter em conta que a música religiosa e a ópera constituíam então os géneros sobre os quais se debruçavam quase exclusivamente os compositores franceses.

O cultivo por Saint-Saëns das grandes formas instrumentais, da música de câmara e das disciplinas clássicas, tornou-se um dos factores essenciais da renovação que caracterizou a escola francesa nas últimas décadas de oitocentos e nos primeiros anos do século XX.

Em 1867, Berlioz dizia acerca de Saint-Saëns: “É um pianista fulminante e um dos maiores músicos da nossa época”. Figura cimeira da arte musical francesa da segunda metade do século XIX, o mestre de Sansão e Dalila não logrou na criação operística igual êxito ao que obteve noutros géneros musicais. Com efeito, Sansão e Dalila é a única das suas treze óperas que se mantém no repertório dos grandes teatros líricos.

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SINOPSE

A acção decorre na Palestina, no século XII antes de Cristo.

ACTO I
Praça pública na cidade de Gaza. À esquerda vê-se a porta do templo de Dagon.

Sob o jugo dos Filisteus, reunidos na praça pública, os Hebreus imploram a Jeová que os liberte da servidão. Entre eles encontra-se Sansão que exorta o seu povo a não perder a fé nem a esperança. Sansão consegue reacender na multidão desanimada e descrente a chama do fervor e da coragem: há que confiar na justiça do Senhor (“Arrêtez, o mes frères.”). Sansão convence-os de que o triunfo está prestes a surgir.

A situação modifica-se quando Abimélech, o sátrapa de Gaza, pronuncia blasfémias contra o povo hebreu e o seu Deus (“Ce Dieu que votre voix implore…”). Sansão incita o seu povo à revolta, dizendo que este em breve será livre (“Israel romps ta chaine! O peuple lève-toi!”). As palavras de Sansão dão coragem aos hebreus, enquanto na confusão Abimélech tenta matar Sansão, mas é morto por este.

O Sumo Sacerdote de Dagon sai do templo acompanhado de guardas e soldados e incita-os a vingar a morte do sátrapa. Amaldiçoa os hebreus proferindo frases terríveis: (“Maudite à jamais soit la race des enfants d’Israel!”). Entretanto, um mensageiro filisteu traz a notícia de que os israelitas, liderados por Sansão, causam terror e morte entre os filisteus. Sansão aparece seguido dos hebreus vitoriosos. Os velhos festejam a vitória, entoando hinos de louvor ao Deus de Israel.

Abrem-se as portas do templo de Dagon e surge Dalila seguida de outras mulheres que trazem grinaldas de flores e saúdam a chegada da Primavera (“Voici le printemps…”). Ao ver Sansão, Dalila começa imediatamente a tentar seduzi-lo (“Je viens célèbrer la victoire de celui qui règne en mon coeur…”). Sansão resiste aos encantos de Dalila. Um Velho Hebreu avisa-o dos perigos que corre – e com ele o povo de Israel – se der ouvidos à sedução. As sacerdotisas do templo de Dagon dançam provocando os guerreiros hebreus. Dalila entoa uma canção que fala da Primavera que se aproxima e do Amor (“Printemps qui commence…”). Dirigindo-se a Sansão, diz que espera por ele ao cair da noite. Sansão não consegue esconder a perturbação que sente. Dalila afasta-se e olha para o herói, como que a chamá-lo.

ACTO II
Casa de Dalila no vale de Soreck

Anoitece. Dalila espera a vinda de Sansão. Jura vingar-se, mas tem de descobrir o segredo da sua força. É preciso que o amor a ajude a vencer a sua fraqueza (“Amour! Viens aider ma faiblesse!”).

Surge o Sumo Sacerdote de Dagon que ordena a Dalila que consiga que Sansão revele o segredo da sua força, pois é preciso derrotar o grande inimigo dos filisteus (“J’ai gravi la montagne…Salut à vous mon pére!”) Dalila recusa o ouro que lhe é oferecido pelo Sacerdote. Quer trair Sansão para vingar a derrota infligida por este aos filisteus. Por três vezes Sansão recusa confiar-lhe o segredo da sua força. Porém, Dalila, determinada, espera conseguir descobrir finalmente nessa noite, com falsas carícias, o segredo da estranha força do hebreu. As vozes de Dalila e do Sumo Sacerdote unem-se num grito de vingança: (“Mort au chef des Hébreux!”). O Sumo Sacerdote afasta-se dizendo-lhe (“Le destin de mon peuple, ô femme, est dans tes mains.”).

Sansão aparece e amaldiçoa a sua fraqueza. Está rendido aos encantos de Dalila e pressente que as juras de amor desta o podem arrastar à desgraça. Dalila acusa Sansão de não a amar. Sabendo que o herói não lhe resiste, continua a seduzi-lo (“Mon coeur s’ouvre à ta voix…Ah! Réponds à ma tendresse...”).

Dalila procura conhecer o segredo de Sansão. Exige-lhe a revelação do segredo da sua força como prova do seu amor por ela. Esta cena decorre no meio de uma tempestade. Sansão diz-lhe que o Senhor mostra a sua cólera desencadeando a fúria dos elementos. Dalila chama-lhe cobarde e corre para dentro de casa. Sansão segue-a.

Dalila, depois de adormecer Sansão, corta-lhe os cabelos e, vitoriosa, aparece à janela e grita pelos filisteus. A casa é invadida pelos soldados ouvindo-se o grito de Sansão (“Trahison”).

ACTO III
1.º Quadro
Prisão de Gaza

Sansão, cego e sem os seus longos cabelos, é escravizado pelos filisteus que o acorrentaram a uma mó obrigando-o a mover o engenho. Profundamente arrependido, suplica a Deus que tenha compaixão (“Vois ma misère helas! Vois ma détresse! Pitié Seigneur!”). Ao longe ouvem-se vozes de prisioneiros hebreus que o acusam de os ter vendido por uma mulher (“Pour une femme il nous vendait”). Sansão ergue a sua prece a Deus. Os filisteus entram na prisão e levam Sansão para o templo.

2.º Quadro
No interior do templo de Dagon. Estátua do deus e altar dos sacrifícios. A meio do templo, duas colunas suportam o peso da abóbada do enorme edifício.

Uma multidão enche o templo. O dia nasce. Os filisteus festejam o seu triunfo cantando a Dagon e entregando-se a uma dança orgiástica. Terminado o bailado do “bacchanale”, Sansão entra no templo conduzido pela mão de uma criança. É humilhado por todos e a própria Dalila não o poupa recordando-lhe as carícias traiçoeiras de outrora, dizendo que apenas pretendia vingar o seu deus e o seu povo (“Souviens-toi de nos ivrésses ! Souviens-toi de mes caresses ! L’amour servait mon projet”).

Sansão pede a Jeová que, por um momento, lhe restitua a antiga força (“Seigneur, inspire-moi, ne m’abandonne pas”). O Sumo Sacerdote e Dalila dão graças a Dagon e dirigem-se para o altar dos sacrifícios. Enquanto os filisteus louvam o seu deus, Sansão pede à criança que o leve até ao centro do templo. Os cânticos a Dagon intensificam-se e Sansão apoiando-se nas colunas do templo, dirige ao Deus de Israel uma prece:

Souviens toi de ton serviteur
Qu’ils ont privé de la lumière!
Daigne pour un instant, Seigneur,
Me rendre ma force première!
Qu’avec toi je me venge, ô Dieu!
En les écrasant en ce lieu!

Num esforço supremo, o herói empurra bruscamente os pilares e faz desmoronar o templo sobre a multidão de filisteus.

“E foram mais os mortos que matou na sua morte dos que matara na sua vida” (Bíblia: Antigo Testamento, “Livro dos Juizes”, Cap.16 v.30)

(FCG) Notas e Sinopse de Isabel Assis Pacheco
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ÓPERA BÍBLICA OU ORATÓRIA CÉNICA?

Em 1867, quando já tinha composto doze óperas, Saint-Saëns concebeu a ideia de adaptar o tema bíblico de Sansão destinado à composição de uma oratória. O próprio compositor, anos mais tarde, numa carta dirigida a Henri Collet, esclarece-nos sobre a génese musical de Sansão e Dalila:

“A ideia de Sansão vem de longe. Houve tempo em que os grandes concertos de Paris, como os de Londres e de outras grandes cidades do estrangeiro, eram com orquestra e coros […] A oratória sacra e a profana adquire então o seu desenvolvimento. Executam-se Elias, O Deserto, a cidade de Paris cria um prémio para o encorajamento da produção nacional desse género tão interessante […] Foi então que um velho amador de música chamou a minha atenção para o assunto de Sansão, falou-me do libreto de Voltaire e esboçou um plano de trabalho em minha intenção. Entretanto, uma jovem ligada à minha família casou com um rapaz encantador com o qual estabeleci relações muito estreitas. Ele fazia versos como amador e eu apercebi-me de que ele era dotado e possuía já um verdadeiro talento. Pedi-lhe que trabalhasse comigo numa oratória sobre o assunto bíblico. Uma oratória – disse ele – não! Façamos uma ópera…”

Nasceu assim a ligação com Ferdinand Lemaire, o libertista de Sansão e Dalila. Baseado nos acontecimentos narrados no Antigo Testamento, Livro dos Juizes (capítulos 13 a 16), o poema de Lemaire gira em torno do último episódio da vida do herói, segundo o capítulo 16 da citada fonte bíblica. É a história do mais famoso guerreiro de Israel, consagrado desde o ventre materno a ser líder do povo eleito do Senhor, Deus único, e dotado de uma força espiritual e física sobre-humana.

Lemaire introduziu algumas alterações na história de Sansão narrada no Antigo Testamento. A morte de Abimélech não figura no texto bíblico, assim como não existe a personagem individualizada do Sumo Sacerdote. Quanto a Dalila, na ópera assume um grande relevo teatral, musical e dramático, distanciado-se assim da narrativa bíblica. Na ópera, o Sumo Sacerdote oferece-lhe dinheiro para trair Sansão. Dalila recusa, pois é levada pelo ódio e desejo de vingança, o que não acontece no Livro Sagrado. Dalila aceita o dinheiro dos príncipes Filisteus depois de descobrir o segredo da força de Sansão: “E os príncipes Filisteus subiram até ela, e trouxeram o dinheiro na sua mão” (cap. XVI, v.18).

O grande relevo de que se revestem os papéis de Sansão e Dalila não é fundamentalmente o fulcro do drama. Este assenta também na luta entre Hebreus e Filisteus, os que adoram Jeová e os que prestam culto a Dagon. No plano musical, o elemento coral toma parte activa na acção. De um lado os hebreus, caracterizados por um grande rigor contrapontístico, quase uma reminiscência das salmodias da sinagoga; do outro os filisteus, ilustrados por um ritmo primitivo, quase pagão. Associado a uma expressão de sensualidade, o cromatismo insinua-se especialmente nas cenas de Dalila. Para satisfazer o gosto do público francês, Saint-Saëns utiliza o pentatonismo e certos ritmos mais ou menos “árabes” que dão à obra um exotismo orientalizante. Dos três actos, o segundo é o mais operístico. Nele dominam as paixões,
a sensualidade, o amor carnal e o desejo. A força deste acto reside na oposição de sentimentos.

Saint-Saëns utiliza melodias envolventes que traduzem o poder persuasivo que Dalila exerce sobre Sansão, a ponto de fazê-lo abdicar da sua missão divina. É neste acto que se encontra o célebre andantino “Mon coeur s’ouvre à ta voix…”, sem dúvida um dos mais famosos e inspirados da lírica francesa da segunda metade do século XIX.

O 3.º acto adquire novamente o rigor de uma grande oratória. No primeiro quadro, a emoção é real nos lamentos de Sansão quando canta acorrentado à mó do moinho. No último quadro, a obra atinge o seu paroxismo na festa solene no templo de Dagon e, acima de tudo, no apogeu da dança vertiginosa (Bacanal), até à espectacular destruição do templo.

A revelação da obra foi por etapas. Começando por ser concebida como uma oratória, a sua feitura foi morosa, ocupando o compositor em sucessivos projectos e remodelações muito antes da sua concretização cénica. Iniciada em 1867, só em 1874, em Croisy, se realizou uma representação privada do segundo acto. Um ano depois, o primeiro acto foi apresentado em versão de concerto, no Théâtre du Châtelet. Só a 2 de Dezembro de 1877, e graças ao prometido apoio de Franz Liszt, teve finalmente a sua estreia no Teatro do grão-duque de Weimar com o libreto traduzido para alemão. O êxito foi grande. A 3 de Março de 1890, os franceses conheceram Sansão e Dalila cantada na língua original no Théâtre Lyrique Français de Rouen.

Sansão e Dalila, outrora longe de acolhimentos entusiásticos, é actualmente um marco referencial obrigatório no domínio músico-teatral dos grandes teatros líricos do mundo.

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