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quinta-feira, 29 de março de 2007

A Tragédia de Júlio César, William Shakespeare


Teatro Municipal São Luiz até 22 de Abril de 2007

Tradução José Manuel Mendes, Luís Lima Barreto e Luis Miguel Cintra

Encenação Luis Miguel Cintra

Cenário e figurinos Cristina Reis

Desenho de luz Daniel Worm d’Assumpção

Música original Vasco Mendonça

Elenco André Silva, Dinarte Branco, Dinis Gomes, Edgar Morais, Filipe Costa, Hugo Tourita, Ivo Alexandre, Joaquim Horta, José Manuel Mendes, Luís Lima Barreto, Luis Miguel Cintra, Luís Lucas, Martim Pedroso, Pedro Lamas, Nuno Lopes, Nuno Gil, Pedro Lacerda, Ricardo Aibéo, Rita Durão, Tiago Matias, Teresa Sobral, Tónan Quito e Vítor de Andrade.

Músicos Gonçalo Marques trompete, Marco Santos percussão, Nuno Costa guitarra.


Co-produção Teatro da Cornucópia com o São Luiz Teatro Municipal


A Roma antiga do século I a.c. reinventada por Shakespeare. A vida política nas mãos de heróis de tragédia que são grandes como gigantes e humanos como nós.

O povo quer coroar Júlio César imperador. Nasce a conspiração. Por boas ou más razões, Cássio e Casca convencem Bruto a unir-se a eles para eliminar César. Bruto que ama César mas também ama Roma, deixa-se convencer, e no dia fatídico dos idos de Março participa no assassinato do grande general no Senado. Marco António, jovem protegido de César, depois de um breve discurso de Bruto junto do cadáver crivado de punhais, pronuncia a sua oração fúnebre e, graças à sua habilidade retórica, levanta as massas populares contra os conjurados que são obrigados a fugir. Marco António, unindo-se a Octávio e Lépido, desencadeia a guerra civil. Na noite anterior à batalha final, o fantasma de César aparece a Bruto e no dia seguinte Cássio e Bruto, vendo-se vencidos, suicidam-se. Octávio e Marco António tomam o poder fazendo justiça à memória de Bruto e reconhecendo nele um justo.

A tragédia de Shakespeare fala de tirania, da cegueira do povo, das sangrentas lutas pelo poder, de vida privada e responsabilidade pública, de paz e de guerra, fala de política e da imensa tensão entre política e moral. Com estas peripécias de uma Roma antiga fantasiada pelo princípio do século XVII, devolve aos espectadores de hoje os jogos políticos de sempre, mas desenha uma visão do Homem e do poder político com valores que o nosso tempo já esqueceu.


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Com este Júlio César voltamos à Roma de Shakespeare que pela primeira vez pusemos no palco há 4 anos com Tito Andrónico no Teatro Nacional Dona Maria II. Voltamos agora a pô-la em cena num teatro público, no São Luiz, Teatro Municipal de Lisboa. A Roma de Shakespeare é a Cidade por excelência, a matriz da Polis. Ficam bem em palcos públicos estas tragédias romanas do fim do século XVI. Porque estes textos falam de política. De responsabilidade política. Mas a tragédia não é a mesma nas duas peças. Se Tito Andrónico recusa o poder, se abdica da sua responsabilidade pública, se confia na Cidade e, cometendo o erro trágico de não reconhecer o vício do seu tempo, a entrega aos corruptos, Júlio César quer o poder numa Cidade que sabe estar minada pela podridão, pela intriga, pela alienação. Esta tragédia é outra. A Tragédia de Júlio César, título com que a peça nos aparece na sua primeira edição e que recuperámos para o espectáculo, é a tragédia de quem assume o poder sabendo que não pode ser justo quem governa um mundo injusto, e assim se condena à morte. Por ambição, como dizem os honestos? Não importa. Quem quiser reinar num mundo injusto terá de ser tirano. E por ser tirano será abatido. E sendo abatido dará lugar a nova tirania, mais injusta do que a sua, numa Cidade que o terá abatido menos para se purificar que para esconjurar uma culpa que é incapaz de reconhecer. Mais do que a tragédia de um homem ou a tragédia do poder, A Tragédia de Júlio César é a tragédia da própria Cidade, da própria vida política de todos os seus cidadãos. Júlio César é a tragédia de Roma. E Roma é a Cidade, é a vida em comum dos homens.

O que torna arrepiante o Júlio César de Shakespeare é a presença do povo, representada por esse grupo de plebeus que abrem a peça a festejar a Lupercália, tocantes na sua dionisíaca alegria, desgraçados na sua inconsciência política, ou pelos quatro ou cinco plebeus que, no texto, representam as massas populares (e que os encenadores desde o século XIX se sentem na necessidade de multiplicar por muitos figurantes) manipuladas pela mais simples demagogia na cena de multidão em que Marco António as amotina e toma o poder para mais tarde o deixar fugir. O que torna arrepiante A Tragédia de Júlio César é o seu realismo, a evidência em cena de que a tragédia nasce da própria estrutura social, de uma sociedade incapaz de se responsabilizar, de encontrar uma maneira de se organizar sem patrão nem chefe, uma sociedade sem virtude, infeliz. Bruto, esse virtuoso que, em luta com a sua privada natureza, assume a chefia da conspiração contra a ameaça da tirania, é, como Tito Andrónico, um homem fora do seu tempo que não conhece a Cidade e que nela queria ver o espelho da sua própria honestidade. Bruto é um irrealista, um cego condenado de antemão. Que o erro desumaniza e que, ao reconhecer o seu erro, se suicidará. Cássio é um generoso num mundo que lhe exige cinismo. Nenhum deles poderá sobreviver. Eles são as facas, mas a tragédia não é a deles, é a de todos, apenas personificada por quem, na sua posição de chefe, carrega sobre os ombros a responsabilidade de uma vida política aberrante, contrária à natureza humana e à sua natural confiança, à vontade de amor, paz e alegria. Sim, Shakespeare, sempre, e no Júlio César também, contrapõe ao pesadelo do vício uma enorme saudade de uma vida sem poder, de um Homem natural, justo e simples, harmonioso, senequiano, aqui representado por Lúcio, o “rapaz” de Bruto, que dorme o sono que os políticos não podem ter e sempre desejam como fuga, um inocente que serve o vinho, acende a luz na biblioteca e sabe tocar um instrumento.

Mas não é nessa utopia de uma vida simples que o realismo de Shakespeare se compraz. Nem o que está subjacente a esta história da Roma antiga é a esperança num povo diferente ou o desejo de uma verdadeira república. A realidade é mais amarga. Nenhuma ideia de revolução. Esta História só se faz com golpes de Estado. O que está subjacente a esta Cidade apodrecida é um desespero. É a necessidade do que, para esta sociedade, seria a solução possível: a ordem, uma mão forte, um monarca autoritário mas justo e que nunca existirá porque, como a peça bem o diz, um homem como esse uma sociedade destas não pode engendrar. Como sempre neste teatro, há aqui quem, depois da tragédia, tome o poder. Octávio será o novo chefe. Mas por quanto tempo será justo? Será ele o imperador que César não chegou a ser. E pelo meio ficam cadáveres. Uma guerra. Uma guerra civil, como afinal são todas. Sempre homens contra homens. Nada mudou, para além de tanta morte. É neste desespero que A Tragédia de Júlio César toca as nossas justas consciências. E é nossa a pergunta que nos deixa: que fazer? Engolir fogo, como a doce Pórcia?

A peça é tanto mais arrepiante quanto, tanto como uma tragédia, é a dramatização de uma crónica. Shakespeare transpôs para teatro, quase a par e passo, o texto do historiador Plutarco. A peça não é um conto político exemplar como dizíamos que era Tito Andrónico. É uma peça histórica. Nem é contrapondo a História aos padrões míticos dos comportamentos humanos que a peça se constrói, como acontecia com Tito Andrónico. Só Cássio ainda se compara pateticamente a Eneias, sonhando-se herói de epopeia. Aqui a História só se compara consigo mesma. Este teatro são “puras verdades” já por nós passadas. Shakespeare transforma em tragédia a própria História.

Nessa ambiguidade reside muito da armadilha que espera quem tentar levar a peça à cena. De quem falamos? Do próprio Júlio César ou de uma personagem de teatro? Que Roma é esta? Uma Roma histórica ou um cenário de tragédia barroca? Vestimos os actores de toga? Construímos os degraus do Capitólio? Mas não foram mais senadores que apunhalaram César? Mas há relógios a dar as horas na Roma Antiga? Livros com folhas? Usavam gibão? Muitos são os anacronismos e as inconsistências desta crónica em cena. Muito teatro é esta crónica. O próprio Cássio e o próprio Bruto o dizem quando nesta peça acabam de assassinar César: “Quantas vezes no futuro/ Esta cena sublime não voltará a ser representada, /Em Estados ainda por nascer e em línguas ainda ignoradas! /Quantas vezes não sangrará César no palco, /Esse que agora jaz no pedestal de Pompeu,/ E mais não vale que o pó! /E quantas vezes isso acontecer, /Outras tantas será nosso grupo chamado /O dos homens que deram à sua pátria a liberdade.” Encenar Júlio César é representar mais uma vez o seu assassinato, sim. Mais uma vez mostrar o erro e também a coragem de um grupo que tentou dar à sua pátria a liberdade que não tinha. Sempre me repugnaram as transposições dos clássicos para a nossa época, que me parecem reduzir a sua complexidade de textos antigos, sem respeito pela nossa inteligência e consciência histórica. Tanto como sempre repudiei as leituras cénicas unívocas das peças de Shakespeare, que em meu entender destroem a sua enorme capacidade de representar a vida como ela é, desarrumada. Pusemos em cena um momento da História. Mas encenar Júlio César é mais do que isso, é uma múltipla tarefa: contar mais uma vez a História, para que não esqueça, sim, falar ao nosso tempo da luta pela liberdade, pôr em cena homens mais que figuras simbólicas e fazer teatro, recriar a História transformada em poesia, comunicar. Tentámos com o nosso espectáculo responder a estas funções. Acima de tudo, construir uma representação ad usum publicum. Um grupo de muitos homens e poucas mulheres, já que a política parece condenada a ser assim, vão a um palco “repetir” a História, figurá-la com os sinais de que precisam para que nem esta Roma deixe de ser Romana nem se deixe de pensar que esta história evoca toda a História, para que, com a morte de César, muitos outros séculos e até o nosso tempo desfilem diante de nós, recorrendo a ainda mais anacronismos que ao da própria figuração de romanos antigos por gente do século XXI, não cortando texto por necessidades de produção nem estratégias de mercado, incorporando cada actor os papéis que for preciso, usando a sala de espectáculos como espaço imaginado do Fórum de Roma, imaginando-se como e ajudando o público a imaginar a antiga multidão. Não criamos uma ilusão de época nenhuma. Expomos o texto de Shakespeare praticamente integral, cuidadosamente traduzido para o trairmos pouco. Contamos uma história antiga tal como outro menos antigo a contou, recorrendo aos anacronismos que são os das nossas cabeças, com os meios que nos são mais expressivos para a figurar. E assim esperamos convocar para o espectáculo memórias de muitos tempos e o nosso próprio tempo. Guerra, para nós, não são homens de túnica romana. São os soldados de camuflado das imagens que afinal só vemos nos filmes dos ricos e na televisão. Mas que os exércitos de que falamos sejam os de Bruto e Cássio, Octávio e Marco António como Shakespeare os escreveu. Outras peças contarão um dia a guerra do Iraque. Também a cenografia que pensámos não quer ser uma “ilusão” de Roma nem uma vistosa decoração da cena para iludir a falta de uma verdadeira comunicação com a plateia. A cenografia, como a música, quiseram apenas ser mais um instrumento dramatúrgico, uma forma actual, nossa, de clarificar a transmissão de uma leitura que se quis humilde, atenta ao texto original que é bem mais inteligente que qualquer leitura que dele nós possamos fazer.

Acima de tudo fica em cena com o público um grupo quase todo de jovens actores a quem cabe trazer para o palco a vida que Shakespeare sem cessar reinventou para o teatro, e a quem é dada a oportunidade de se debaterem com uma temática política e uma retórica antiga que os podem levar mais longe do que a experiência do nosso mísero quotidiano nos permite, cada vez mais afogado em lixo. Não fazemos os clássicos para chamar público nem para lhe dar “Cultura”. Este texto, como de outra maneira o Filoctetes de Sófocles que antes representámos na sala da Cornucópia, ajuda a matar o egoísmo e confronta-nos com a nossa própria responsabilidade na vida da Cidade. Alimenta talvez o nosso desespero.

Luis Miguel Cintra
Encenador

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